Como surgem novas doenças?
Autores: Carla Cristina Martins Silva, Flávia Alves França, Jade de Melo Albanaz, João Victor Martins Louro.
Você já ouviu falar sobre as eras geológicas? Os eventos que marcam o início de cada uma delas podem parecer muito antigos, mas, para alguns cientistas, nós estamos no marco de uma nova era, o Antropoceno. Pertencer aos primeiros três séculos desta era, entretanto, não é um motivo de alegria ou animação, já que ela é caracterizada por mudanças ecossistêmicas causadas por nós, a humanidade, induzidas pelo desenvolvimento acelerado, explosão populacional e pressões econômicas. Como resultado, não só causamos cada vez mais problemas para o meio ambiente, como a diminuição da camada de ozônio, a perda de biodiversidade e o agravamento das mudanças climáticas, mas também causamos problemas para nós mesmos. Forma-se então, um ciclo de desastres.
Com isso, um assunto que ganhou atenção no último ano foi a relação dos impactos antrópicos no meio ambiente com o surgimento de doenças, entre elas, a COVID-19. Mas você sabia que isto já aconteceu outras vezes na história da humanidade e que essas doenças que surgiram são comuns até hoje?
Em princípio, você sabe o que e quais são os impactos antrópicos nos ecossistemas e o qual a sua relação com o surgimento de doenças?
Impactos antrópicos são quaisquer impactos causados pelos seres humanos no meio ambiente. Entre eles podemos citar o desmatamento, a poluição do solo, dos rios, do ar e o agravamento do efeito estufa. Dentre esses fatores, o desmatamento é um dos principais agravantes do surgimento de novas doenças, pois quando um ecossistema é alterado via desmatamento, mobilizamos diversos patógenos, que podem entrar em contato com nossa sociedade, podendo se disseminar rapidamente, como aconteceu com o SARS-CoV-2.
Imagem por Jade Albanaz
Além disso, evidências que cada vez mais vêm sendo consolidadas, mostram que a vulnerabilidade de nossa sociedade a novas pandemias está associada às mudanças climáticas, à biodiversidade e à preservação de áreas naturais. Segundo o ecologista Kris A Murray e o zoólogo e presidente da organização EcoHealth Peter Daszak “O surgimento de novas doenças virais é impulsionado por mudanças socioeconômicas, demográficas e ambientais. Isso inclui mudanças no uso da terra, como desmatamento, expansão agrícola e degradação de habitat”. Mas o que é esse tal de habitat? O habitat é o local de abrangência de uma espécie e relaciona-se com as condições que permitem a sua sobrevivência.
Imagem por Jade Albanaz
Se o habitat é afetado de alguma forma, há uma alteração no ecossistema e, essa alteração, pode contribuir para uma perda de biodiversidade ao mesmo tempo que pode contribuir para um crescimento populacional elevado de algumas espécies. Entende-se ecossistema como a interação entre os fatores bióticos (seres vivos) e fatores abióticos (elementos físicos e químicos), e quando há redução ou adição de qualquer elemento no ecossistema, ocorre uma perturbação ambiental. Como a diversidade de espécies evita que organismos causadores de doenças, denominados patógenos, possam atingir ambientes que antes não habitavam, quando há degradação dos habitats, há um aumento da chance desses patógenos saltarem de animais silvestres para o homem.
Quando isso ocorre, temos as chamadas doenças zoonóticas, que estão muito presentes em nossas vidas. Sabe a malária, a leishmaniose, o HIV, a febre amarela e até mesmo a dengue? Pois é, todas são exemplos de zoonoses e grande parte provém do uso exacerbado dos recursos naturais. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, dados coletados pela ONG Greenpeace indicam que 75% das doenças emergentes são zoonóticas.
Imagem por Jade Albanaz
Um dos casos mais marcantes de zoonose no Brasil é a malária, que é considerada endêmica na região norte do país e eventualmente apresenta momentos de surto. De forma geral, o Anopheles, que é o mosquito transmissor da doença, é um animal de hábitos silvestres, e se encontra nas matas fechadas, porém, na metade do século XX, essa doença passou a acometer mais pessoas na região. Esse período foi marcado por uma elevada taxa de desmatamento, levando o homem a adentrar cada vez mais na Amazônia, como ocorreu, por exemplo, durante a Ditadura Militar e o projeto de construção da rodovia Transamazônica. Até hoje a malária acomete muitas pessoas, sendo alguns dos agravantes a expansão da fronteira agrária e a urbanização de áreas, até então, florestais. De acordo com uma pesquisa conduzida por Andrew J. MacDonald e pela Erin A. Mordecai, pesquisadores na Universidade de Stanford, a cada aumento de 10% do desmatamento, há um aumento de 3,3% da incidência da doença, o que demonstra claramente que há uma relação tênue dos impactos antrópicos do ecossistema com a emergência de doenças. É importante ressaltar que o causador disso tudo não é exclusivamente o desmatamento, mas sim um conjunto de fatores que levam a degradação do ambiente, da qualidade de vida, da economia e da saúde pública.
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Mas por que isso ocorre?
Parte disso ocorre através da entrada de pessoas em ambientes que até então haviam sofrido ações antrópicas, sendo duas das principais causas que desencadeiam o surgimento de novas doenças a pressão demográfica e o frequente contato humano com animais silvestres.
A pressão demográfica, um fator extremamente importante na emergência de novas doenças, levou à expansão da agricultura, do uso da terra e a práticas de colheita e manejo de produtos agrícolas, o que fez com que nichos ecológicos fossem invadidos pelos seres humanos, onde novos agentes infecciosos podem ser encontrados. Além disso, a invasão dessas áreas acarreta também na atração de roedores silvestres e de outros animais, que atuam como reservatórios de doenças e se aproximam do homem em busca de alimento. Neste último caso, temos como exemplos os vírus Junin e Machupo, agentes de febres hemorrágicas na Argentina e Bolívia, transmitidas ao homem pela urina de roedores silvestres.
Como a biodiversidade pode atuar na contenção de doenças?
A pesquisadora e Coordenadora da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre, Marcia Chame, explica em uma entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU): “O que se observa é que, quando se tem ambientes com ecossistemas íntegros, ou seja, ambientes com alta biodiversidade, dentro desses ambientes existem espécies que são amplificadoras, boas incubadoras ou boas transmissoras de agentes infecciosos e existem outras espécies que não fazem isso de uma maneira competente.”
Considerando que quando há degradação e consequentemente perda dessa biodiversidade, grande parte das espécies que conseguem se adaptar aos ambientes degradados são boas transmissoras de agentes infecciosos. Quando as espécies transmissoras (no caso de alguns mosquitos e outros insetos parasitas) vão se alimentar do sangue de uma espécie incompetente, pode até inocular o vírus, mas não vai adiante. Isso dilui a capacidade de transmissão, e é chamado de Efeito de Diluição que a biodiversidade exerce sobre a transmissão de doenças.
Marcia Chame ainda explica: “Quando existe a perda dessa biodiversidade, normalmente as espécies que conseguem se adaptar a ambientes degradados obviamente são boas transmissoras de agentes infecciosos porque essa é uma estratégia do vírus e do parasita. Ele também faz a busca para sobrevivência e, para ele, se adaptar numa espécie que tem alta capacidade de viver num ambiente degradado é o seu maior sucesso de sobrevivência.”
Sendo assim, a hipótese do Efeito de Diluição sugere que diversas comunidades ecológicas limitam e contenham a propagação de doenças por meio de mecanismos. Portanto, as perdas de biodiversidade podem piorar as epidemias e aumentar o surgimento de doenças zoonóticas, causando possíveis surtos e pandemias, que prejudicam os seres humanos e a vida selvagem. Consequentemente, o declínio da biodiversidade induzido pelo homem pode aumentar as doenças humanas e da vida selvagem e diminuir a produção agrícola e florestal.
Biodiversidade associada aos Serviços Ecossistêmicos
Considerando que os ecossistemas e a biodiversidade podem funcionar como um agente controlador da disseminação de patógenos, alguns pesquisadores da Ecohealth Alliance, uma organização internacional sem fins lucrativos de saúde ambiental global, propuseram que a contenção de doenças seja considerada um serviço ecossistêmico, ou seja, um serviço concedido pelos ecossistemas que traz benefícios à sociedade. Portanto, de um lado podemos ver a contenção de doenças pelo ecossistema, e do outro a ação humana intensificando esse fenômeno.
O artigo "Ecology and economics for pandemic prevention" publicado na revista Science em 2020 analisa quais seriam os investimentos necessários para evitar futuros possíveis surtos de doenças zoonóticas, como no caso da COVID-19. Com gastos destinados para preservação e conservação de ambientes naturais, programas de monitoramento do comércio de animais selvagens, programas de detecção e controle precoce de doenças zoonóticas e outros programas, chegam no valor de aproximadamente 30 bilhões de dólares, porém receberíamos na forma de serviços ecossistêmicos em termos de mitigar a emissão de dióxido de carbono o equivalente a aproximadamente 26 bilhões de dólares. Por outro lado, a contenção de uma doença zoonótica pode evitar muitos outros gastos em termos econômicos globais, como no caso da pandemia ocasionada pelo coronavírus, na qual o artigo estima que os prejuízos econômicos giram em torno de 8 a 15 trilhões de dólares.
O que podemos fazer para diminuir nosso impacto no meio ambiente?
Visto isso, é notório que as ações antrópicas no meio ambiente levam a diversos problemas, incluindo a emergência de novos patógenos e doenças. Mas qual a nossa responsabilidade nesse processo?
Quando falamos em impactos antrópicos em grande escala, como o desmatamento, parece ser algo que está muito distante da nossa capacidade individual de auxílio, mas existem atitudes simples que já contribuem para sua diminuição. Dentre essas ações que a sociedade de um modo geral pode aderir, encontram-se o apoio à produção sustentável, a busca por representantes que apoiam a criação de Unidades de Conservação, a adoção de um consumo mais consciente, o apoio à demarcação de terras indígenas e a demanda pela proteção de terras públicas. Vale também o apoio a ONGs e campanhas que possuem trabalhos contra o desmatamento e a favor da conservação e restauração de ambientes naturais. Por fim, é importante termos consciência de que o desmatamento é apenas um dos grandes impactos antrópicos que causam prejuízo ao meio ambiente e à saúde humana, mas infelizmente está longe de ser o único. Um dos diversos exemplos disso é o grande aumento da produção de plástico e a consequente poluição dos oceanos. Esse evento tem causado inúmeras mortes de animais marinhos e aves. Além disso, causa também diversos problemas de saúde a longo prazo em humanos que consomem esses animais, pois junto com eles, acabam consumindo partículas de microplástico e as toxinas que eles acumulam. Sendo assim, o desmatamento não é o único impacto antrópico prejudicial à saúde humana e ao meio ambiente, e existem outras formas de diminuir os impactos no meio ambiente e na nossa saúde, como a redução do consumo de produtos que geram resíduos descartáveis. E você? Já acrescenta no seu dia a dia alguma prática sustentável? Conta para a gente!
Sugestões complementares:
Caso você tenha interesse em saber mais, convidamos você a assistir:
• o episódio "Próxima pandemia”, da série Explicando
• o documentário "Solo Fértil"
• o documentário "Oceanos de plástico"
• o projeto "Cortina de fumaça"
Até breve :)
REFERÊNCIAS:
CHAVES, Leonardo Suveges Moreira et al. Global consumption and international trade in deforestation-associated commodities could influence malaria risk. Nature communications, v. 11, n. 1, p. 1-10, 2020.
ELLWANGER JH ET AL. 2020. Beyond diversity loss and climate change: Impacts of Amazon deforestation on infectious diseases and public health. An Acad Bras Cienc 92: e20191375. DOI 10.1590/0001- 3765202020191375.
DOBSON, Andrew P. et al. Ecology and economics for pandemic prevention. Science, v. 369, n. 6502, p. 379-381, 2020.
MACDONALD, Andrew J.; MORDECAI, Erin A. Amazon deforestation drives malaria transmission, and malaria burden reduces forest clearing. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 116, n. 44, p. 22212-22218, 2019.
CIVITELLO, David J. et al. Biodiversity inhibits parasites: broad evidence for the dilution effect. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 112, n. 28, p. 8667-8671, 2015.
ROCHA, Janes. Biodiversidade é a chave para prever e evitar novas pandemias. Jornal da ciência, 16 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/biodiversidade-e-chave-para-prever-e-evitar-novas-pandemias/ >. Acesso em: 4 de março de 2021.
Vetores saudáveis: relação entre pandemias, clima e biodiversidade. Jornal da ciência, 27 de maio de 2020. Disponível em: <http://www.abc.org.br/2020/05/27/vetores-saudaveis-o-relacionamento-entre-pandemias-clima-e-biodiversidade>. Acesso em 4 de março de 2021.
ISLER, Juliane. Próxima pandemia pode surgir na Amazônia: desmatamento contribui para zoonoses. GreenMe, 19 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.greenmebrasil.com/informarse/ambiente/45213-amazonia-virus-desmatamento-e-proliferacao-de-doencas-infecciosas/#:~:text=%E2%80%9Cj%C3%A1%20%C3%A9%20algo%20bem%20estabelecido,a%20situa%C3%A7%C3%B5es%20de%20epidemias%20infecciosas.%E2%80%9D > acesso em 7 de março de 2021.
Como o desmatamento tem nos deixado mais doentes. GreenPeace Brasil, 27 de março de 2020. Disponível em: <https://www.greenpeace.org/brasil/blog/como-o-desmatamento-tem-nos-deixado-mais-doentes/> Acesso em: 14 de março de 2021.
As mudanças ambientais e a saúde humana: impactos da degradação ambiental sobre surtos de doenças infecciosas. Embrapa, 28 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/52769086/artigo---as-mudancas-ambientais-e-a-saude-humana-impactos-da-degradacao-ambiental-sobre-surtos-de-doencas-infecciosas> acesso em 14 de março de 2021.
Surto de Febre Amarela está diretamente ligado à perda de biodiversidade. Entrevista com Marcia Charme. Laboratório de demografia e estudos populacionais, 13 de fevereiro de 2017. Disponível em: <https://www.ufjf.br/ladem/2017/02/13/29806/#:~:text=%E2%80%9C%C3%89%20o%20efeito%20de%20dilui%C3%A7%C3%A3o,do%20v%C3%ADrus%20e%20do%20parasita%E2%80%9D> acesso em 18 de março de 2021.
Desmatamento pode levar ao aumento de doenças infecciosas em humanos, Fiocruz, 11 de dezembro de 2019. Disponível em: <https://saudeamanha.fiocruz.br/desmatamento-pode-levar-ao-aumento-de-doencas-infecciosas-em-humanos/#.YE_LkJ1KjIU>. Acesso em: 14 de março em 2021
PIGNATTI, Marta G.. Saúde e ambiente: as doenças emergentes no Brasil. SciELO, 21 de setembro de 2003. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2004000100008> acesso em 4 de março de 2021.
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